O ESPÍRITO DO NOSSO FUNDADOR: ESPÍRITO DE PIEDADE, DE POBREZA E DE ESCONDIMENTO


O ESPÍRITO DO NOSSO FUNDADOR:
ESPÍRITO DE PIEDADE, DE POBREZA E DE ESCONDIMENTO
Pe. João Batista Cortona


A importância desta conferência resulta do sujeito que a trata e da autoridade com que a trata.
O fato de ter condensado o espírito do beato José Marello (e da sua Congregação) em três palavras: PIEDADE - POBREZA - ESCONDIMENTO, não pode ser uma surpresa para ninguém que conheça a vida dos primeiros Oblatos nas suas origens.
Uma certa surpresa, quem sabe, pode vir da angústia com a qual Pe. Cortona lamenta que se tenha perdido, pouco a pouco, algum desses elementos originários.
Hoje, o fato da beatificação do Fundador pode constituir um impulso a repensar a sua espiritualidade autêntica.


Em nome de J.C. Amém
Primeira Conferência feita como Padre espiritual
Ano 1921 - Mês de outubro

São João, a águia dos evangelistas, enquanto contemplava o céu foi consolado com uma admirável visão que ele descreve nestes termos: “Vidi Angelum fortem, descendentem de cae lo, amictum nube, et iris in capite eius.. et habebat in manu sua libellum apertum”.
Este anjo, segundo a interpretação do Ven. Beda, Riccardo e outros Padres, é um símbolo de Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual na sua encarnação desceu do céu, se vestiu da nossa humanidade, e como um sol difundiu os raios da sua santidade por todo o mundo; colocou sobre sua cabeça o íris da paz, porque veio para reconciliar os homens com Deus; colocou na sua mão divina um livro porque nos revelou os mais augustos mistérios de graça e de salvação. Assim explicam os Santos Padres.

Em sentido acomodatício, porém, podemos aplicar este símbolo ao nosso santo Fundador, o qual foi verdadeiramente anjo por pureza. Se a castidade segundo os sentimentos de S. Ambrósio, São Bernardo e outros, est vita angelorum, faz dos homens que a possuem outros tantos anjos, nós podemos dizer isto com toda a verdade do nosso santo Pai, o qual não só transpareceu por um dom singularíssimo de castidade e foi modelo desta virtude, mas procurou inspirar o amor à castidade em todas as pessoas que por razão de seu ministério aproximou, e especialmente nos membros de nossa Congregação.
Ele, com todo o direito, pode ser chamado de anjo, porque o foi verdadeiramente.
Vidi Angelum fortem... A fortaleza segundo Alberto Magno fixa o intelecto no conhecimento de Deus, e o coração no amor de Deus e do próximo; fortifica o ânimo para não deixar-se abater na adversidade nem ensoberbecer-se na prosperidade; toma forte o coração para exercitar-se no bem e ficar longe do mal. Ora o nosso bem-amado Pai mediante a meditação constante das perfeições divinas fixou o seu intelecto no conhecimento de Deus, e falava dos atributos divinos com uma eloquência que atraía verdadeiramente para Deus. Que diremos, pois, de seu amor a Deus e ao próximo? Toda a sua vida, especialmente no período, sacerdotal, foi um exercício contínuo da sua sublime caridade.
Deste amor, que fazia arder o seu coração, nascia aquele zelo infatigável de fazer com que Deus fosse conhecido e amado pelo maior número de pessoas possível. Ele não se deixou jamais abater pelas contrariedades que encontrou para instituir a Congregação. Na questão da Pequena Casa recusou-se a seguir os conselhos de Mons. Bertagna, porque apontavam para a solução da questão um caminho demais cômodo, e por isso ele estimou que não pudesse vir de Deus.
À fortaleza demonstrada nos diversos casos da sua vida soube unir, com admirável convívio, a suavidade, colocando assim em prática o dito do Espírito Santo: fortiter et suaviter.

Descendentem de caelo: O nosso venerado fundador apareceu verdadeiramente suscitado por Deus para dar início a uma Congregação que corresponde mesmo às necessidades dos tempos, como pode atestar o favor encontrado nos dois Sumos Pontífices que governaram a Igreja nestes últimos anos, e especialmente o favor encontrado nos bispos, em que todos consideram a nossa instituição como verdadeiramente providencial, e um dia, quando um sacerdote dos nossos confrades explicava a finalidade da nossa Congregação e um Bispo, eu o ouvi exclamar: “Vós realmente caístes do céu, porque vos propondes uma finalidade tão adequada aos nossos tempos”.

Amictum nube: vós haveis de recordar a nuvem prodigiosa que guiou o povo de Israel por tantos anos. O nosso bom Pai teve a assistência particularíssima do Espírito Santo, que o guiava nas suas dúvidas, que o protegia nas suas dificuldades e, sobretudo o iluminava para conhecer o espírito com que deviam ser guiados os seus filhos.

Et iris in capite eius: O íris é símbolo da reta intenção como também da reconciliação e da paz. Da reta intenção deixou numerosos exemplos o nosso querido Pai; enquanto amou tanto a vida escondida e pôs todo empenho em ocultar as suas obras, de modo que escondido aos homens ficassem visíveis somente a Deus, o único a quem ele se esforçava para agradar. O seu espírito conciliador apareceu luminoso em todas as questões que tinha a sustentar, especialmente na última que lhe custou, pode-se dizer, a vida, porque não obstante todos os seus esforços por vir a um entendimento justo com os superiores da Pequena Casa, não obteve sucesso. Foi esta a pena que lhe custou o martírio que consumiu seus últimos dias. E Dom Ronco, conhecendo bem tudo isso, ao telegrafar para o Vigário Geral de Acqüi a fim de apresentar as condolências, definia o Marello como um mártir da caridade.

Et habetat in manu sua libellum apertum: Verdadeiramente, Dom Marello surpreendido pela morte ainda na idade de 51 anos, não teve tempo de colocar por escrito as nossas Constituições 1, mas à semelhança do Divino Mestre, que se limitou a ensinar a doutrina celeste, que mais tarde dos seus discípulos deviam transmitir por escrito às pessoas de todas as idades e de toda a terra, ele se limitou a ensinar com o exemplo e com a palavra viva das suas conferências, que primeiramente fazia todos os dias e depois mais raramente, mas ao menos toda semana, e isto até o momento que foi eleito bispo de Acqüi; e então supria com a palavra escrita, que nós conservamos como precioso tesouro, mais de uma centena de cartas que nos escreveu, com as quais nos guiava em todas nossas dúvidas, cartas que constituem um ensinamento prático e de um espírito tão sublime, que não cessam de recomendar estas três virtudes que deveriam ser como que as virtudes características de todos os membros da Congregação.

Espírito de piedade, no qual se tomaram insignes os nossos primeiros confrades e aqueles de vós que sois mais anciãos hão de recordar o nosso saudoso Pe. João, que deu exemplo verdadeiramente luminoso desta virtude, motivo por que, na ocasião de sua morte, seus numerosos penitentes, que o tinham visto sempre a rezar e assistir todas as Missas que podia, diziam que um santo havia morrido.
Ele foi o primeiro discípulo do nosso amado Pai, educado por ele segundo o seu espírito.

Talvez alguém poderia dizer: como é que o nosso bom Pai pode inspirar tais sentimentos de piedade a pobres camponeses, completamente rudes, como eram os nossos primeiros confrades? Quais foram os meios de que se serviu? Certamente, é preciso admitir que nos primórdios da nossa Congregação, que havia de ter por meta a imitação da vida interior de São José, Deus, em consideração às longas orações e obras que o nosso fundador fez anteceder à fundação da nossa Congregação, contribuiu com graças extraordinárias, E devemos também confessar que o fundador tomou as providências que deviam alcançar as finalidades por ele desejadas. A primeira delas foi a instrução que ministrava todos os dias, impreterivelmente. E à instrução unia o retiro espiritual que tanto inculcava neles.
Sabe-se que pelos primeiros seis meses, eles, mesmo durante o tempo de recreação, não saíam nunca daquele quartinho que lhes servia de refeitório, oficina e estudo; Ali, o seu recolhimento era, pode se dizer, contínuo. A isto se unia a prática de um rigoroso silêncio e a recitação do Oficio da Bem-aventurada Virgem, motivo pelo qual iam muitas vezes a capela. A visita ao SS. Sacramento, o uso freqüente do sinal da cruz, já que tinha prescrito a eles de persignar-se toda e vez que entrassem ou saíssem da do seu quartinho, a jaculatória: “Seja louvado Jesus Cristo” com a qual deveriam saudar-se sempre que se encontrassem.

Picuinhas, dirá alguém que julga as coisas de Deus com leviandade, mas que, quando feitos com santa simplicidade serviam maravilhosamente para manter o pensamento na presença de Deus - meio predisposto por Deus para a aquisição da perfeição religiosa. O demônio, invejoso deste espírito que dava tanta glória a Deus, usou meios para fazer infiltrar na nossa pobre Congregação homens que, cheios de si andavam desprezando a piedade dos outros dizendo que à piedade se dedicavam aqueles que, não tendo talento para outras coisas, queriam distinguir-se ao menos nisto...

A pobreza era, pois aquela que se convinha aos filhos de São José, que deviam imitar a pobreza da Sagrada Família; e não é preciso recordar-vos o que já escrevi nas memórias da vida do Pai, que recomendo a cada um de vós não somente ler, mas também meditar2.

A esta vida de oração, passada na mais rigorosa pobreza queria o santo Fundador que se unisse o amor à vida escondida: et vita vestra abscondita est cum Cristo in Deo, era a sua máxima favorita, que tanto praticava e recomendava também a nós seus filhos.

Hoje nós nos gabamos e com razão de ter tido como Fundador e mestre um homem tão santo e admirável como era Dom Marello, porém não devemos nos acontentar com uma admiração estéril, mas devemos rezar, retomar ao espírito dos primeiros tempos da Congregação. Ora, uma vez que, depois da celebração do primeiro Capítulo Geral, tem-se o desejo de aperfeiçoar a nossa instituição, devemos começar a aperfeiçoar o espírito que, depois, é, pois aquele mesmo espírito que o fundador tanto nos recomendava em toda a sua vida, já que aquilo que forma uma Congregação é o espírito que lhe dá forma.

Por assecundar as suas santas intenções devemos fazer reinar em meio a nós aquele espírito de oração, de santo recolhimento, da presença de Deus, tão necessário para manter em nós aquela vida de união com Deus que deve ser a alma da nossa vida religiosa, e sem a qual a nossa não seria mais vida religiosa, mas desordem.

Um dia em que Santa Francisca de Chantal ouviu uma superiora que se acusava de não manter na comunidade o recolhimento, disse com grande coragem: “Creio que vós falais por humildade, porque uma casa onde não reina o santo recolhimento não é uma família religiosa, mas uma desordem”.

Retomemos também àquele espírito de pobreza ao qual o nosso pai atribuía tanta importância. Empenhemo-nos todos em de praticá-la com o maior rigor e assim podemos nestes tempos dificílimos experimentar quão grande é por nós a proteção de São José, o qual aumentará o auxílio segundo a grandeza da nossa necessidade.

Tenhamos todos em grande estima aquela terceira virtude que o nosso venerado Pai também tanto nos recomendou, que é a retidão de intenção e o amor à vida escondida. Estas três virtudes segundo o pensamento do nosso Pai deviam ser as virtudes características e como que constitutivas do nosso viver religioso. Se todos nós fizermos um esforço para alcançá-las reinará em meio a nós a unidade de espírito, tão necessária para a união dos corações.

Lembrai-vos, meus diletíssimos irmãos, aquilo que há dias pudemos ler na Civiltà Cattolica3 , que de resto é doutrina de Santo Tomás. Não devemos nunca esquecer que também para as associações vale a máxima geral que as coisas se conservam e aumentam com os mesmos meios com que foram produzidas. Se mantivermos na Congregação este fogo sagrado do Espírito que nosso Pai transmitiu para nós, a nossa Congregação, não obstante as gravíssimas dificuldades da hora presente poderá não só conservar-se, mas armar as suas tendas num e noutro mundo, até à consumação dos séculos, mas no dia em que, quod Deus avertat, não honrasse mais da piedade, fosse desprezada a santa pobreza e entrasse em nós o espírito mundano da vaidade, então se deveria desesperançar da sua conservação. Por isso, todos nós devemos esforçar-nos para conservar em nós e transmitir intacto às mais tardias gerações este sagrado patrimônio do Espírito do Pai, e assim cooperaremos não só para o bem da Congregação, mas também para a glória de Deus e a salvação das almas.



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(1)  Em uma relação apresentada S.E. Dom Giacinto Arcangeli, novo bispo de Asti, em 29 de maio de 1900, Pe. João Cortona, todavia disse: “Congregação dos Oblatos de São José. O seu Regulamento foi composto pelo nosso Fundador Com. Arced. José Marello nosso bispo de Acqui, e foi aprovado, verbalmente, por Dom Ronco, de s.m... Ora, porém se é compilada a Regra mais ampla e particularizada a qual fazemos voto que venha depressa aprovada por V. Excelência”. (nota do primeiro estensore da Conferência).
(2)  Cfr. Breves Memórias, p. 25.
(3)  Cfr. “A Civilização Católica”, 1921. vol 3, quad. 1710, 7 de setembro de 1921: “A juventude católica e o Papa. O significado e as esperanças de um cinqüentenário” (1868-1921).



Artigo publicado em MARELLIANUM, n 08  out/dez 1993 pg. 13-17
Tradução Pe. Álvaro de Oliveira, OSJ