José Marello Retrato Físico e Espiritual e Estilo de Vida


JOSÉ MARELLO
RETRATO FÍSICO E ESPIRITUAL - ESTILO DE VIDA

Pe. Mário Pasetti, osj
Postulador Geral

José Marello era alto de estatura e bem proporcionado. Tinha carnação mui­to branca, cabeça grande, testa larga, cabelos pretos, rosto redondo, na­riz regular, olhos azuis, vivazes, penetrantes; os lábios sempre tocados por um leve sorriso; a voz harmoniosa. O comportamento era senhoril, os modos gentis e afáveis.
De inteligência pronta, saía-se muito bem nas matérias literárias: em 1860 uma redação sua sobre Vitório Alfieri, preparada para um amigo, obteve o pri­meiro prêmio, mas ele não permitiu que soubessem o seu nome. Saía-se melhor ainda nas ciências exatas: em Turim exerceu por cerca de um ano e meio a profissão de projetista e ainda se conserva daquele tempo um estudo seu de um desvio de estrada entre Govone e San Martino Alfieri; quando clérigo dese­nhava com arte a capa do jornalzinho interno do seminário; ele mesmo desenhou o seu brasão episcopal e o apresentou para aprovação ao conselho de heráldica; os seus livros-caixa são um modelo de ordem e exatidão.
Dos livros e obras que influenciaram a sua formação cultural e espiri­tual conhecemos apenas uma pequena parte, porque a sua biblioteca se disper­sou. Quando criança teve pelas mãos uma “Coleção de orações devotas”, datada de 1851 em Alba. É interessante descobrir ali, entre outras coisas, na pagina 191, a linda invocação, transmitida posteriormente aos seus Oblatos: “Bendita seja a santa e imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria”; como tam­bém na página 64 a máxima de S. Teresa que ele tanto apreciava: “Nada te per­turbe: nada te assuste: tudo passa: tudo se vence com a paciência, nada falta a quem teme a Deus: Deus basta”.
Um outro livrinho de orações tem por título “Alimento dos fiéis ao assistir à Santa Missa” e é datado de 1852 em Turim. Nas páginas brancas iniciais José Marello esboçou a lápis Vitório Emanuel II e Giuseppe Garibaldi, com seus grandes bigodes, mostrando assim os novos interesses que iam nele amadurecendo no tempo das conquistas garibaldinas.
Nos anos do Colegial e da Teologia usou como textos: para a matemática, o “Marta”; para a física, o “Luvini” e o “Ganot”; para a dogmática, o “Perrone”; para a moral, o “Pramaggiore”; para o direito canônico, o “Devoti”; para a Sagrada Escritura, o “Martini”. Utilizava ainda um Novo Testamento de bolso para procurar e meditar cada dia algum versículo da Palavra de Deus.\
Pelos seus rascunhos e pelas suas cartas aos amigos sabemos quais eram as leituras que fazia durante as férias de verão em S. Martino. Leu com interesse “O Telêmaco” de Fenelon, “Os mártires do cristianismo” de Chateaubriand, os “Sermões” de Massillon, “Os pensamentos” de Pascal, “Os Noivos” de Alexandre Manzoni, os livros de Gioberti e os de Balbo, as “Confissões” de S. Agosti­nho, a Vida de S. Margarida Alacoque. Sempre a partir dos escritos, conhece­mos as seguintes obras por ele lidas ou citadas durante o período sacerdotal e episcopal: a “Summa Theologica” de S. Tomas de Aquino, a “Regra” de S. Ben­to, as “Homilias” de S. João Crisóstomo, a “Filotéia” e as “Colóquios espiri­tuais” de S. Francisco de Sales, as Obras de S. Teresa e de S. João da Cruz, o “Maná da alma” do Segneri, “O combate espiritual” de Scupoli, “O grande meio da oração” e “Prática de amar Jesus Cristo” de S. Afonso, as “Máximas espirituais” do Rosmini, as “Conferências de Notre Dame” de Lacordaire e as “Conferências espirituais” do Pe. Faber, o “Tratado da verdadeira devoção” do Montfort, a “Vida de S. Jerônimo” do Bougaud, a “Vida de S. Carlos” do Sylvain, o “Dicionário histórico” do Moroni; e ainda a “Imitação de Cristo” que ele carregava sempre e que foi encontrada com ele no leito de morte, com o marca-páginas assinalando o capítulo “De gloria coelesti”.
Deve ser lembrado ainda que o Marello tinha uma memória prodigiosa: vis­ta uma vez uma pessoa, não a esquecia mais. Um dia encontrando-se com as crianças da aldeia de Sessame e, falando da Crisma, disse a uma delas: “Você não a recebeu hoje de manhã porque lha dei no ano passado em Montabone”.
A sua conversa era alegre e agradável e sabia enriquece-la com argúcia e anedotas. Lembramos aqui uma: - Dois caipiras vão a Missa solene, por volta do meio-dia; ao perceber que o padre ainda está no sermão, decidem ir até ao boteco mais próximo; conversa vai, conversa vem, depois de umas boas pingas chega a hora das Vésperas e os dois finalmente se lembram da Missa; quando chegam à igreja está tocando a campainha da bênção eucarística; então um tranqüiliza o outro: “Viu, estamos ainda no Santo!”.
Por temperamento o Marello era sincero e disposto, com tendências até a distinguir-se, como referiram alguns colegas de seminário e outros. Toda­via soube dominar-se de tal maneira que foi considerado mais tarde como a imagem personificada da doçura e da humildade, um S. Francisco de Sales redivivo.
Quanto à saúde sabemos que, por volta dos oito anos, por causa de sua sensibilidade ao ar insalubre de Turim, foi obrigado a mudar-se para os cam­pos abertos de São Martino, e aí se recuperou bem; todavia teve que cercar-se sempre de cuidados. Ele mesmo se definia um pote rachado que, com os devidos cuidados, poderia servir como um novo. Sofria de hemorróidas com freqüentes hemorragias, mas suportou este incômodo sempre em silêncio, sem por isso fu­gir às mais extenuantes fadigas do sagrado ministério. Foi depois de uma des­tas hemorragias que, para manter a palavra dada, quis partir do mesmo modo para Savona, onde foi surpreendido por uma debilidade mortal e concluiu a sua vida santa. Com razão Dom Ronco pôde dizer naqueles dias: “Foi um mártir da caridade”.
Uma última observação pitoresca: quando garoto jogava muito bem a bola elástica, jogo muito comum no Piemonte naquele tempo; e mesmo quando Bispo não desdenhava algumas vezes o jogo das bochas.
Entremos agora no seu cotidiano. Quando clérigo fixou, em 15 de novem­bro de 1866, um minucioso horário: “De manhã sinto uma lei nos meus mem­bros... (refere-se à famosa passagem de S. Paulo aos Romanos 7,23); então se faz a oferenda de todas as ações a Deus. “Jam Lucis” com o Oremos. Missa, algum ponto de meditação preparado impreterivelmente na noite anterior; atenção nas Orações; entrando na igreja, esquecer-se de tudo e lembrar que se vai tratar com um patrão. Recolhimento no “Actiones”, método no estudo; leitura das Cartas de São Paulo ou dos Provérbios e Livros Sapienciais nos retalhos de tempo; nenhum pensamento ocioso; nenhum olhar indiscreto; tempo de aulas. Durante o almoço: recolhimento na bênção e atenção a leitura; no passeio: conversas humildes, ordenadas e prudentes; Terço, segundo o espírito da Igreja; nenhuma atitude de soberba principalmente quando aparece a ocasião; justiça nas notas (ele era assistente dos filósofos e tinha que escrever as notas cotidianas de piedade, estudo e comportamento); oração a Deus antes de ir dormir e resumo por escrito das ações feitas durante o dia; leitura livre antes de pegar no sono”.
Temos que acrescentar que às quartas-feiras, quando vinha visitá-lo com freqüência seu pai, lhe esvaziava os bolsos, oferecendo-lhe assim a oportunidade de ajudar os clérigos mais pobres. Naqueles anos, mas também antes e depois, o apetite no seminário de Asti nem sempre era pro­porcional ao alimento e vice-versa. Na vida de Dom Giuseppe Fagnano, colega do Marello até 1860, depois Salesiano e Prefeito Apostólico na Patagônia, lemos que ele passava tanta fome no seminário de Asti que recorria a meios extremos. Levantava-se de noite para saquear a cozinha subterrânea do seminário até que um dia cometeu o erro de cair desgraçadamente numa grande bacia cheia de óleo, provavelmente colocada lá pelo astuto ecônomo. Tal estratagema, porém não derrotou o esfomeado que com esperteza desviou as investigações deixando as pegadas oleosas dos pés descalços perto das camas de todos os seus companheiros que dormiam.
Como sacerdote, enquanto permaneceu no palácio episcopal como secretá­rio de Dom Savio, teve o seu horário vinculado ao do Bispo. Com ele recitava a Liturgia das Horas e fazia a meditação; assistia a missa dele e celebrava a própria; vinha em seguida o horário de escritório com a apresentação das audiências e o despacho da correspondência; almoçavam tarde e às 18 horas encontravam-se ainda juntos para as Vésperas; jantavam às 20h45min e depois iam descansar. O secretário devia acompanhar o Bispo também nas viagens e nas visitas pastorais; administrava também o trabalho dos empregados domésticos. Aos bocadinhos ele tomava um pouco de tempo para si e para escrever aos amigos, como aparece nas cartas daquele tempo. O Bispo estava muito
con­tente com o seu secretário. Chamava-o “o meu anjo” e acabou elegendo-o seu confessor.
Com a fundação da Congregação dos Oblatos de São José em 1878, tendo sido nomeado Cônego efetivo da Catedral em 1880 e nomeado também diretor espiritual e confessor dos seminaristas e de alguns Institutos de religio­sas, os seus dias se tornaram cada vez mais ocupados por causa das confe­rências aos Oblatos e aos seminaristas, das confissões e da participação no Coro e na Missa conventual.
Depois da morte do Bispo em julho de 1881, para alimentação e hospeda­gem passou para o seminário, onde pagava uma pensão trimestral de 125 liras; das 9 às 12 horas, exceto nos dias de festa, permanecia na Cúria para as ta­refas de Chanceler, que lhe foram confiadas pelos colegas do Capítulo duran­te o período de sede vacante; nesse cargo foi reconfirmado pelo novo Bispo Dom Ronco. Em 1883 acrescentou-se a atribuição de ajudante do Vice-reitor do seminário; em 1886 a de Arcediago e finalmente aquela de Examinador do Clero em 1887. Muito ocupado, não perdia um minuto de tempo e pensava em tudo, mas sem agitação, conservando inalterada a paz interior, que brilhava em seus olhos serenos e transparecia em seu comportamento sempre modesto. Suscitava maravilha o vê-lo redigir as Atas oficiais da Cúria “currenti calamo”, sem rasuras, com caligrafia bonita e clara e, quando necessário, em latim elegante e solto.
Em 1885, tendo sido desocupados pelos inquilinos alguns quartos, o Marello se hospedou em S. Clara, onde alguns Oblatos já se haviam transferido no ano anterior. O seu quarto era muito simples: uma cama com um colchão de folhas, uma mesa, um crucifixo, alguns livros, o Breviário. As mais das ve­zes rezava num coreto afastado que levava à igreja; durante a meditação lia muito pouco e entregava-se imediatamente a pensamentos santos. Devido aos seus múltiplos compromissos, almoçava tarde e à parte, com o Pe. Cortona e com o Pe. Medico, que o esperavam.
Após o seu dia extremamente trabalhoso, permanecia ainda, altas horas da noite, a rezar o terço ajoelhado no chão frio.
Aos domingos celebrava a Missa da comunidade e explicava o Evangelho, em substituição do Pe. Cortona que ia exercer seu ministério nas aldeias. Celebrava com grande devoção e parecia ter o rosto transfigurado; o sermão costumava ser longo, mas ouviam-no com prazer, pois quanto dizia lhe saía do coração.
Ainda duas observações, não totalmente insignificantes: usava os cabelos mal cortados (alguém dizia que pareciam as escadas da catedral de San Giovanni em Turim), mas era porque na sua caridade fazia questão de cortar o cabelo com um velho barbeiro, já quase abandonado pelos clientes. O seu andar consistia em passinhos rápidos. O cônego Cerruti, que era um tipo simples e acostumado a pensar em voz alta, dizia aos nossos: “Vocês devem saber que ele carrega o cilício e que as pontas machucam”. A propósito de penitências podemos acres­centar que mesmo nos dias mais frios do inverno nunca colocava as mãos nos bolsos.
Os seus métodos educativos usuais adquirem realce nos fatos seguintes. Estava dando uma palestra aos nossos seminaristas e o Pe. Lourenço Franco, então garoto de doze anos, pegou no sono. Os colegas o cutucavam e riam, o que gerou uma pequena confusão. Apercebendo-se, o Marello disse: “Vejam, fa­lamos de coisas tão pequenas, que até os pequenos dormem”. Em seguida conti­nuou a sua palestra.
O outro fato e narrado por Pe. Giuseppe Sabbione no Processo Apostólico. Ele fora aluno em nosso pequeno Colégio de S. Clara.
No exame final, ele com um seu colega já haviam terminado a sua tradução; o Pe. Cortona, que assistia ao exame, notando-os com a cabeça no ar, obrigou-os a entregar as folhas e, por penitência, mandou-os para a capela rezar o rosário inteiro. Faltavam 10 minutos para o meio-dia e eles confabularam entre si: “Como se pode rezar o rosário inteiro e ainda chegar a tempo para o almoço?” O Sabbione então disse: “Ouça, eu digo Ave e você responde Santa”; e assim em poucos minutos terminaram a sua penitência. Ao saírem para o pátio, o Pe. Cortona os viu e os chamou: “Vocês já disseram o rosário? “Sim”. E como puderam ter feito isso em tão pouco tempo?”
Então lhe contaram o seu segredo. O Pe. Cortona desatou a rir e correu a contar a pequena aventura ao cônego Marello, o qual riu com muito gosto e disse ao Pe. Cortona: “Você é que está errado, porque ao invés de castigá-los devia tê-los premiado”.
Falta-nos ainda descrever a jornada do Marello como Bispo na intimidade da sua casa episcopal, no seu relacionamento com o clero e com os fiéis da Diocese, e nos encontros com os seus Oblatos.
O Bispo tinha o costume de levantar cedo para as suas orações. Saindo do quarto, empregava longo tempo na capela para a preparação da Missa, que celebrava sempre com grande fervor e compostura. Também o agradecimento du­rava bastante. Não se preocupava com a comida e a bebida, deixando que de­las providenciasse o seu secretário; mas cuidava dos deveres da hospitalidade que exercia com prazer. As refeições eram feitas com a devida conveniência. A esse respeito seu camareiro Felice Balostro depôs nos Processos: “Comia pouco; lembro que lhe preparavam normalmente um pãozinho de aproxi­madamente cem gramas, que às vezes não comia por inteiro no intervalo entre o almoço e o jantar”.
“Nunca o ouvi dar ordens sobre as refeições: não desaprovava nem se comprazia com aquilo que era servido. Também a cozinheira disse ao nosso Padre Patrizio que não tinha dificuldade em servir o Bispo, porque ele estava sem­pre contente com qualquer coisa que lhe preparasse. Depois do jantar, costu­mava conversar com o secretario ou então passear com ele no salão do palácio episcopal; depois se recolhia ao seu quarto, onde rezava e em seguida conti­nuava a ocupar-se com a correspondência e com os problemas da Diocese até altas horas da noite”.
Tomava pouco tempo para os folguedos: raramente ia passear fora da cida­de; quando necessitava fazer um pouco de movimento por causa de sua saúde frágil, então descia até ao pátio-jardim: no inverno por isso lhe varriam a neve. Todavia, se houvesse alguma criança para ser crismada ou algum doente para ser visitado, ninguém conseguia segurá-lo, mesmo que fosse no inverno ou nevasse. Para os outros, de fato, era muito atencioso e esquecia-se de si mesmo. Uma vez o seu secretário sentiu uma certa indisposição. Com aquele seu olhar pene­trante, Dom Marello apercebeu-se disso e sem alarde lhe disse sorrindo: “Ouça, Pe. Pedro, amanhã eu me visto como simples sacerdote e depois vamos fazer juntos um bom passeio”. No dia seguinte, de fato, fizeram o passeio. O secretá­rio pensou então que devia acompanhá-lo: só mais tarde, refletindo sobre o fato, concluiu que ele lhe havia feito aquela fineza para lhe proporcionar uma ocasião de descanso.
Também com a criadagem demonstrava bondade paternal. Ainda novo no em­prego, o doméstico Felice esquecia com freqüência de fazer certas coisas. As­sim um dia esqueceu-se de lhe engraxar os sapatos; quando foi pedir desculpas ao Bispo, este respondeu: “Não tem importância! Você bem sabe que eles ainda se vão sujar”. Sabe-se que diversas vezes o Bispo entrou no quarto do domés­tico enquanto dormia profundamente. Sendo ele ainda um jovem de vinte anos, era sua preocupação que ele de manhã cedo pudesse dormir um pouco mais. Então se aproximava devagarzinho da janela, pela qual entravam já alguns raios de sol, e a fechava hermeticamente, mesmo as venezianas. Depois, pé ante pé saía do quarto, satisfeito porque com o seu capricho conseguia fazê-lo dormir uma hora a mais.
Dom Marello vestia-se com dignidade, mas a sua roupa íntima era a de um pobre. Aqueles que lavavam e remendavam a roupa íntima do Bispo diziam: “Esta não é roupa para um Bispo, mas para um pobretão”. Quando uma vez o Felice fi­xou o olhar na ponta dos seus sapatos, quadrada e já fora de moda, o Bispo sorrindo lhe disse: “Você vai ver que um dia voltarão a ser de moda”.
Nas viagens de trem usava a terceira classe e para ir ou voltar da esta­ção ferroviária não usava a carroça, mas ia a pé acompanhado pelo camareiro que lhe carregava a bagagem. E tinha que sair de casa sempre com antecedência porque no percurso as crianças o cercavam e ele parava para as acariciar e abençoar.
No palácio episcopal eram distribuídas esmolas e ninguém era dispensado sem antes ter sido socorrido. Aliás, havia estabelecido uma certa importância em dinheiro que cada dia devia ser distribuída em caridade.
Aos encarregados havia dado ordem de admitir para audiência quem quer que se apresentasse e a qualquer hora. O bispo ouvia sempre a todos com gran­de interesse, para todos tinha uma palavra amiga, demonstrava-lhes benignidade e compaixão e os despedia consolados. Conta o Pe. Cortona: “Um dia uma pes­soa começou a contar-lhe uma lengalenga sem fim que cansaria um morto, enquan­to eu esperava o momento para poder conversar com ele sobre coisas muito importantes. Quando ela terminou e se despediu, eu não pude conter-me de lhe obser­var: ‘Excelência, como consegue interessar-se tanto de uma coisa tão insignificante? ’ E ele me respondeu: ‘A nós parecem coisas insignificantes, mas para eles são muito importantes. Se queremos que os outros se interessem pelas nossas coisas, devemos dar atenção às misérias e às mágoas dos outros’”.
Procuravam com prazer o Bispo, sobretudo os seus sacerdotes. Confirma o camareiro Felice: “Nunca os sacerdotes que iam vê-lo me perguntaram com antecedência qual era o seu humor, e ao saírem nunca percebi que tenham ficado contrariados ou descontentes”. Monsenhor Soave, então vigário da catedral e depois pároco de Fontanile, por sua vez declara: “Às vezes eu ia procurar o Bispo e ele me recebia com festa, em seguida sentava-se no sofá e não queria que eu me sentasse numa poltrona, mas dizia: ‘Sente-se aqui no sofá perto de mim para podermos conversar melhor’”.
Em 1941 o cônego Bianchi contou-nos o seguinte fato: “Acompanhei Dom Ma­rello na visita pastoral nas colinas próximas de Ponzone (acho que foi em Caldasio). Ele ia a cavalo e recomendava-me que o guiasse com cuidado. A um cer­to momento o cavalo empinou-se e desferiu um coice. Depois colocou violentamente a pata no chão e me atingiu na canela da bota e esta ficou tão estraga­da que a tive que deixar. Poucos anos depois, Dom Marello mandou-me chamar a Ácqüi e me disse: ‘Pensei em mandá-lo buscar aquela bota que você deixou nas cercanias de Ponzone...’. Àquelas palavras fiquei emudecido e até mudei de cor... Então o santo Bispo percebendo isso me disse com doçura paterna: ‘Vou mandá-lo para a Capital... (querendo com tal expressão indicar a aldeia de Ponzone) não para as montanhas... Fique tranqüilo, de bom humor e vá em nome do Senhor!’”.
O Prior de Martina d’Olba, Pe. Vitório Macciò depôs nos Processos: “Eu solicitava ao Bispo providencias imediatas contra um sacerdote extra-diocesa­no de vida irregular. Temendo algum escândalo no meio da população, o Bispo se acontentou então de exortar-me a confiar na Providencia e a rezar; mas quando soube que a vida do sacerdote tinha se tornado claramente escandalo­sa não demorou em tirar-lhe todas as faculdades e a expulsá-lo da Diocese. No confronto de visões entre mim e o Bispo, um dia lhe escrevi uma carta mui­to ressentida e até mesmo ofensiva. Indo eu algum tempo depois a Ácqüi, o Vi­gário Geral Monsenhor Pagella fez-me compreender a falta cometida e exortou-me a pedir desculpas ao Bispo. Fui, na certeza de encontrá-lo desgostoso. No entanto encontrei-o muito afável; e ao invés de uma reprimenda, ele mesmo as­sumiu as minhas desculpas dizendo: ‘Quando a gente está no fogo não consegue medir as palavras’”.
Tratava da mesma maneira os seus seminaristas. Lembra o Pe. Giuseppe Calvi, Pároco de S. Giorgio Scarampi: “Durante uma primavera, nós Clérigos do seminário estávamos para fazer uma revolução seguindo o exemplo dos clérigos re­volucionários de Alessandria por causa da aversão que sentiam pelo superior. Na noite da Quinta-feira Santa veio até à nossa classe o Reitor Monsenhor Pagella que nos disse amáveis palavras, as quais, porém não nos sossegaram. No Sábado Santo dirigimo-nos ao salão do palácio episcopal para fazer os votos de Boa Páscoa ao Bispo. Sempre amável e sorridente como de costume, o Bispo não fez nenhum aceno a nossa iminente revolução, mas nos endereçou palavras tais que acalmaram completamente o ânimo de todos: daquele dia em diante também o su­perior antipático se tornou um pai e não mais um tirano”.
Uma palavra ainda sobre as relações do Marello com o seu Vigário Geral Monsenhor Pagella. Como o Bispo gostava de circundar de silêncio e reserva a sua jornada de trabalho, não faltou quem afirmasse que não era o Marello que dirigia a Diocese, mas o seu inteligentíssimo e também temido Vigário. Não era, porém assim. De fato todos os dias, às 11h45min, o Pagella subia as escadas do palácio episcopal para conversar com o Bispo sobre práticas e assuntos da Diocese; e não era questão apenas de assinaturas, porque, a pedido do Bispo, mais de uma vez o Vigário teve que mudar frases e até a redação inteira de alguns documentos. Mas tamanha era a veneração que o Marello tinha inspirado no Pagella, que este teria se jogado no fogo por ele. Ele afirmou mais tarde, na disputa que o Bispo defrontou com a “Piccola Casa di Torino” a respeito da “Opera di S. Chiara”: “Se eu tivesse que gastar nesta causa o meu patrimônio inteiro, fá-lo-ia de boa vontade, porque esta foi a última vontade do meu santo Bispo”. São dele também estas palavras, por ocasião da morte do Marello em Savona: “O Senhor quebrou o molde, nunca mais fará um homem assim”.
Para ir fazer visita pastoral aos fiéis de sua Diocese, três vezes por ano, especificamente na primavera, no verão e no outono, Dom José Marello dei­xava o palácio episcopal silencioso por muitos dias e até por semanas inteiras. A Diocese de Ácqüi contava com cerca de 125 mil habitantes e 120 paróquias, es­palhadas por colinas e muitas também em lugares intransitáveis dos Apeninos, com estradas incômodas, percorríveis só a pé ou a cavalo ou em lombo de burro.
Entre a primavera de 1890 e a de 1895 foram visitadas todas as paróquias, exceto uma (Lussito), que, todavia tinha visitado rapidamente a pé, pois se encontrava perto da cidade; e havia dito ao Pároco que voltaria para a visi­ta oficial quando ficasse pronta a igreja nova, que ele gostaria de benzer.
Era uma verdadeira festa quando o Bispo chegava a uma paróquia. Tendo ele já a fama de santo, o povo ficava fascinado pelo seu olhar, pela sua pala­vra, pelo seu modo de celebrar, pelo seu incansável zelo apostólico. No depoi­mento dos Processos, Dom Alessandro Soave assim lembrava a visita pastoral a Ciglione: “Foi recebido solenemente pela população; chegando à igreja agrade­ceu a recepção e exortou os fiéis a servir-se da ocasião para se aproximarem dos santos sacramentos. No dia seguinte, durante as celebrações, falou longa­mente, deixando uma ótima impressão no povo. Não se preocupava com o cansaço e saiu da igreja todo suado. Fiquei particularmente impressionado ao vê-lo dis­tribuir a santa comunhão: distribuía-a de uma forma toda especial, penso eu que era por causa da fé viva e do amor para com os fiéis, bem contente de ofe­recer o pão dos anjos aos seus filhos. Sua face sorridente e sua atitude, a ma­neira como distribuía a hóstia consagrada, deixavam transparecer algo que não parecia terrestre. Lidando com o povo, mostrava tal doçura e afabilidade que parecia um pai no meio dos seus filhos. Lembro certa vez em que ele se entreteve afavelmente com os músicos dizendo a todos uma boa palavra e chegando a um velho com o bumbo, acariciou-lhe a longa barba branca e lhe disse sorrindo:Você é o mais barulhento de todos’”.
É bem notório o que aconteceu em Ricaldone, Grognardo, Piancastagna, Tiglieto e em outros lugares. Menos notório é o seguinte fato que aconteceu em Moirano. Havendo pouca gente na igreja por causa do frio, então os sacer­dotes presentes sugeriram ao Bispo de omitir a homilia. Mas Dom José Marello pregou do mesmo modo no púlpito e longamente, com a maior tranqüilidade, mesmo quando se apercebeu que alguns sacerdotes haviam se retirado para o calor da casa paroquial; e também alguns fiéis haviam deixado a igreja, pois, como disse ao Monsenhor Del Ponte, esse era o seu dever e quis cumpri-lo até o fim.
De volta para a sede episcopal, não se esquecia do povo que havia vi­sitado e de suas necessidades. Em Olmo Gentile, durante a visita à paróquia, ele havia encontrado a pobre igreja desprovida de pia batismal (usavam uma bacia ou algo semelhante). De Ácqüi o Bispo mandou de presente um Batistério de pedra, que e conservado pelo povo como a melhor lembrança.
Embora Bispo, continuou a dedicar aos seus Oblatos o afeto, o tempo e também subsídios, apesar das suas limitações, pois podia dizer de encontrar-se “quoad mensam - no que diz respeito à comida” na situação dos Bispos “in partibus infidelium - em terra de missão”. Às vezes os visitava apressadamente em Asti; e outras vezes os recebia na sua vila episcopal de Strevi: para um pouco de descanso.
Monsenhor Domenico Somaglia declara: “Nos poucos anos em que Dom José Marello foi Bispo de Ácqüi eu era Pároco em Strevi, onde no verão ele pas­sava cerca de um mês na vila episcopal. Durante este tempo os alunos do seu instituto costumavam ir à vila em dois grupos distintos. Para eles prepara­va como dormitório uma grande sala da vila onde eram arrumados colchões cheios de palha de milho apoiados sobre cavaletes de madeira. Após as refeições os reunia ao seu redor para uma conversa familiar sempre alegre e tem­perada com anedotas edificantes e agradáveis e com o canto de hinos religio­sos, executado pelos jovens a pedido do Bispo. Algumas vezes os conduzia consigo a passeio sobre aquelas colinas amenas. Com freqüência a meta des­tes passeios era uma chácara chamada “la Bassa”, seja porque era habitada por pessoas muito honestas, seja porque situada numa posição linda e saliente e provida de um pátio espaçoso onde os jovens se podiam divertir, seja porque se podia ir até lá sem atravessar a aldeia. Nestas visitas às vezes o chacareiro oferecia uva ou outra fruta ao Servo de Deus e aos seus jovens. Mesmo sem experimentar, ele a distribuía pessoalmente e com discrição para que não abusassem da generosidade do oferente”.
O Pe. Cortona ia freqüentemente à Ácqüi para conversar com o Fundador sobre as necessidades da Congregação. O último encontro aconteceu em 1895, depois da Páscoa. Tendo se agravado a doença de que ele sofria de vez em quando, o Pe. Cortona o achou tão pálido que quase não parecia o mesmo. Aquele santo homem se lamentava com o Pe. Cortona dizendo que havia coloca­do na Obra de S. Clara mais de 100.000 liras e agora o faziam passar por ladrão. Tendo que viajar no dia seguinte, à noite o Pe. Cortona se despediu do amado Pai, nunca imaginando que seria aquela a última vez que o teria visto vivo. Como de costume, o venerando Pai procurou algo para lhe dar: não havendo encontrado na sua gaveta senão um cupom no valor de poucas li­ras, fez questão de lhe oferecer isso.
Um último episódio inédito pode resumir bem e concluir com simplicida­de estas anotações sobre a vida do Bem-aventurado Marello. “Estive presente, lem­bra o Cônego Bianchi, nos funerais do Servo de Deus em Ácqüi: foram reali­zados com muita solenidade e com a participação de muita gente e do clero de toda a Diocese. Um particular digno de nota: ao lado de uma das portas do palácio episcopal encontrava-se um grupo de pobres que choravam desconsolados pela morte de seu benfeitor: pareciam frangos extraviados”.

Artigo publicado em MARELLIANUM, n. 1, jan./mar. 1992.

Tradução de: Pe. Álvaro de Oliveira.